sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Sem Enfeite Nenhum Adélia Prado

Um dos cem Melhores Contos Brasileiros do Século"

4 de março de 2012 às 14:46
Sem Enfeite Nenhum
Adélia Prado
A mãe era desse jeito: só ia em missa das cinco, por causa de os gatos no escuro serem pardos. Cinema, só uma vez, quando passou os Milagres do padre Antônio em Urucânia. Desde aí, falava sempre, excitada nos olhos, apressada no cacoete dela de enrolar um cacho de cabelo: se eu fosse lá, quem sabe?
Sofria palpitação e tonteira, lembro dela caindo na beira do tanque, o vulto dobrado em arco, gente afobada em volta, cheiro de alcanfor.
Quando comecei a empinar as blusas com o estufadinho dos peitos, o pai  chegou pra almoçar, estudando terreno, e anunciou com a voz que fazia nessas ocasiões, meio saliente: companheiro meu tá vendendo um relogim que é uma gracinha, pulseirinha de crom', danado de bom pra do Carmo. Ela foi logo emendando: tristeza, relógio de pulso e vestido de bolér. Nem bolero ela falou direito de tanta antipatia. Foi água na fervura minha e do pai.
Vivia repetindo que era graça de Deus se a gente fosse tudo pra um convento e várias vezes por dia era isto: meu Jesus, misericórdia... A senhora tá triste, mãe? eu falava. Não, tou só pedindo a Deus pra ter dó de nós.
Tinha muito medo da morte repentina e pra se livrar dela, fazia as nove primeiras sextas-feiras, emendadas. De defunto não tinha medo, só de gente viva, conforme dizia. Agora, da perdição eterna, tinha horror, pra ela e pros outros.
Quando a Ricardina começou a morrer, no Beco atrás da nossa casa,   ela me chamou com a voz alterada: vai lá, a Ricardina tá morrendo, coitada,  que Deus perdoe ela, corre lá, quem sabe ainda dá tempo de chamar o padre, falava de arranco, querendo chorar, apavorada: que Deus perdoe ela, ficou falando sem coragem de aluir do lugar.
Mas a Ricardina era de impressionar mesmo, imagina que falou pra mãe, uma vez, que não podia ver nem cueca de homem que ela ficava doida.  Foi mais por isso que ela ficou daquele jeito, rezando pra salvação da alma da Ricardina.
Era a mulher mais difícil a mãe. Difícil, assim, de ser agradada. Gostava que eu tirasse só dez e primeiro lugar. Pra essas coisas não poupava, era pasta de primeira, caixa com doze lápis e uniforme mandado plissar. Acho mesmo que meia razão ela teve no caso do relógio, luxo bobo, pra quem só tinha um vestido de sair.
Rodeava a gente estudar e um dia falou abrupto, por causa do esforço de vencer a vergonha: me dá seus lápis de cor. Foi falando e colorindo laranjado, uma rosa geométrica: cê põe muita força no lápis, se eu tivesse seu tempo, ninguém na escola me passava, inteligência não é estudar, por exemplo falar você em vez de cê, é   tão mais bonito, é só  acostumar. Quando o coração da gente dispara e a gente fala cortado, era desse jeito que tava a voz da mãe.
Achava estudo a coisa mais fina e inteligente era mesmo, demais até, pensava com a maior rapidez. Gostava de ler de noite, em voz alta, com tia Santa, os livros da Pia Biblioteca, e de um não esqueci, pois ela insistia com gosto no titulo dele, em latim: Máguina pecatrís. Falava era antusiasmo e nunca tive coragem de corrigir, porque toda vez que tava muito alegre, feito naquela hora, desenhando, feito no dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou: coitado, até essa hora no serviço pesado.
Não estava gostando nem um pouquinho do desenho, mas nem que eu falava. Com tanta satisfação ela passava o lápis, que eu fiquei foi aflita, como sempre que uma coisa boa acontecia.
Bom também era ver ela passando creme Marsílea no rosto e Antissardina n° 3, se sacudindo de rir depois, com a cara toda empolada. Sua mãe é bonita, me falaram na escola. E era mesmo, o olho meio verde.
Tinha um vestido de seda branco e preto e um mantô cinzentado que ela gostava demais.
Dia ruim foi quando o pai entestou de dar um par de sapato pra ela. Foi três vezes na loja e ela botando defeito, achando o modelo jeca, a cor regalada, achando aquilo uma desgraça e que o pai tinha era umas bobagens. Foi até ele enfezar e arrebentar com o trem, de tanta raiva e mágoa.
Mas sapato é sapato, pior foi com o crucifixo. O pai, voltando de cumprir promessa em Congonhas do Campo, trouxe de presente pra ela um crucifixo torneadinho, o cordão de pendurar, com bambolim nas pontas, a maior gracinha. Ela desembrulhou e falou assim: bonito, mas eu preferia mais se fosse uma cruz simples, sem enfeite nenhum.
Morreu sem fazer trinta e cinco anos, da morte mais agoniada, encomendando com a maior coragem: a oração dos agonizantes, reza aí pra mim, gente.
Fiquei hipnotizada, olhando a mãe. Já no caixão, tinha a cara severa de quem sente dor forte, igualzinho no dia que o João Antônio nasceu. Entrei no quarto querendo festejar e falei sem graça: a cara da senhora, parece que tá com raiva, mãe.
O Senhor te abençoe e te guarde,
Volva a ti o Seu Rosto e se compadeça de ti,
O Senhor te dê a Paz.
Esta é a bênção de São Francisco, que foi abrandando o rosto dela, descansando, descansando, até como ficou, quase entusiasmado.
Era raiva não. Era marca de dor.
Texto publicado em "Prosa Reunida", Editora Siciliano - São Paulo, 1999, foi incluído por Ítalo Moriconi no livro "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 349.

Chve chuva

foi só eu:
1- fazer um esforço danado pra lavar o quintal com a água da máquina de lavar
2- deixar as janelas abertas
3- deixar 3 varais de roupa secando
4- fazer escova no cabelo
que a chuva chegou

Ajudante de motorista

Entro no ônibus. Ponto Final. Praça do Correio. Centro da Cidade de São Paulo.
O cobrador não estava e fiquei na parte da frente. Entram o motorista e o cobrador e me perguntam: você sabe o itinerário desse ônibus? Eu e o cobrador somos novatos, é minha primeira viagem de volta. Pode por favor sentar aqui ao meu lado e ir me indicando o itinerário?
Então eu assumo a função de ajudante : vira a es...querda, vira a direita, passa o viaduto, pega a direita, olha o corredor, olha o ponto, até o instante em que a chuva impedia enxergar qualquer objeto. Pergunto pelo desembaçador e o motorista não sabe onde é. E fala ao telefone com a suposta namorada. E o ônibus vai se arrastando pela avenida, numa marcha nervosa. Até que a mulher ao lado oferece um pano e eu limpo o para-brisas. E quando tem que virar a esquerda ele passa direto e vamos por caminhos desconhecidos. Mas de alguma forma a Avenida Imirim surge a nossa frente e o motorista suspira aliviado: e diz aqui eu conheço.
Faço menção de passar a catraca e o cobrador diz: Paga não Dona, aqui a senhora é VIP. Nos salvou.
E eu desço aliviada, pensando como foi que consegui trazer o ônibus até aqui, eu que nunca consigo distinguir a esquerda da direita?

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Lá em casa, lá na casa onde eu era criança, as compras de comida eram feitas na cooperativa do ferroviários. Havia uma caderneta já com a relação dos produtos e uma vez por mês um filho era escalado pra ditar pra minha mãe e ela ia especificando as quantidades.
A caderneta era entregue lá na cooperativa e uns dias depois vinha um carroceiro entregar a "compra". Todo mês era o mesmo ritual.
Mas uma vez por ano, meu pai avisava: a cooperativa "abriu limite". Abrir limite era o máximo. Significava que iríamos comprar tecidos.
Num dia bem cedinho, saiamos minha mãe e minha irmãs. Na cooperativa havia uma longa fila, acho que esse limite era aberto pra todos os ferroviários e esperamos na fila por umas 4 horas. Lá pelo meio dia chegava a nossa vez. Era atendido uma família por vez. O vendedor ia então abrindo as peças de tecido no balcão. Musselinas, chifom, chamelote, Piquet, voal, ana ruga, cretone para lençóis. Uma profusão de cores e texturas. Minha mãe não me deixava escolher, ela decidia o tecido e a prioridade. Filhas mais velhas eram privilegiadas. Eu, a mais nova tinha que aceitar a escolha. Mas não achava ruim, a mãe sabia o que era melhor. Já em casa, ela escolhia os modelos que estavam moda e aqueles cortes viraram lindos vestidos.
Acho que só antigamente os tecidos encolhiam. Então minha mãe lavava todos os tecidos antes de costurar. Eu não entendia porque ela fazia isso. Ela tirava do tecido o que eu mais gostava: o cheiro da goma, o cheiro do tecido novo. Eu guardava retalhos que não tinham sido lavados só pra ficar sentindo o cheiro da goma.
Hoje fui numa loja de tecidos. Uma loja grande. Uma profusão de tipos, cores e texturas. Fiquei por ali na loja passeando entre os corredores, sentindo o cheiro, a maciez dos tecidos, as cores. A vendedora solicita quis saber por 2 vezes se já tinha sido atendida. Com explicar pra ela o que eu queria?? Eu queria minha mãe ali pra comprar tecidos e fazer vestidos pra mim. Eu queria a minha infância.

Pra minha terceira irmã mais velha

Pra minha terceira irmã mais velha
Eramos 4 irmãs. Eu, a mais nova delas. 
Quando nasci, a quarta mulher, claro que meu pai deve ter ficado muito decepcionado. Ele queria muito um filho homem. Acabou tendo. Não um, mais dois. Então éramos 6. Éramos 8 contando o pai e a mãe.
Imagino como era dificil dar comida e roupa pra toda essa gente. 
Mas se os bens materiais eram escassos, a gente tinha amor de sobra. Amor entre irmãos.
Eu tive a melhor terceira irmã que alguém poderia ter tido. Apesar dela ter se casado bem mocinha ainda, a infância que passamos juntas foi cheia de ternas lembranças.
Foi ela quem me contou "como nascem os bebês". Lembro do choque que levei quando ela me contou o que faziam os casais. Eu tinha 11 anos e era uma menina boba. Em momentos importantes ela me ajudou. Ela me acolheu em sua casa quando eu quis morar na "capital".
Talvez eu nunca tenha dito ou demonstrado o quanto eu gosto dela, mas nunca é tarde pra dizer;
Neuci Palma você é a melhor irmã mais velha que alguém pode ter.